Tornar-se humanos

15.04.2020
de Agnese Varsalona
Atualidades

Não é difícil imaginar como o mundo seria mais humano se cada um olhasse e tratasse o outro como uma pessoa que lhe pertence. Mudaria o modo de nos relacionarmos, as escolhas pastorais, profissionais, políticas, sociais. Cada um daria o melhor de si mesmo, colocando em jogo as melhores competências para encontrar e tornar possível as soluções mais humanas.

No encontro com o outro, é fundamental manter viva essa consciência do comum pertencer. Não temos que pensar que precisamos construir o vínculo com o outro partindo do zero, mas nos é concedido partir de um “já”, de uma grande comunhão que nos precede! O outro já me pertence, faz parte de mim! Os seus sucessos, as suas descobertas, os seus talentos, como também seus insucessos, me pertencem, posso me alegrar, sofrer e lutar com e por ele.

É libertador ter a consciência que a identidade humana e cristã é uma realidade em devir: estamos nos tornando homens verdadeiros, estamos nos tornando cristãos autênticos. Tem um processo de humanização em ato. Somente o homem pode ser desumano, um animal não pode ser desanimal, essa palavra não existe em nenhuma língua. O ser humano é fruto de um processo de aprendizagem.

Ser pessoas humanas é um dom (já o somos) e ao mesmo tempo uma tarefa, porque estamos nos tornando verdadeiramente humanos. Ninguém decidiu vir ao mundo como homem, mas cada um pode decidir se tornar humano.

Nesse sentido, se pode, então, dizer que o homem está a caminho rumo a sua autêntica humanidade, rumo ao que é chamado a ser. De fato, para dizer algo do homem – que não pode nunca ser definido uma vez por todas – muitas vezes é usada a imagem de estar a caminho. O homemviator. Sim, o migrante se torna então uma metáfora para dizer algo importante e essencial a respeito de todos os homens. Todos – também os autóctones – nesse sentido são migrantes, pessoas que vão rumo à sua verdadeira humanidade.

São principalmente as relações que fazem amadurecer nossa humanidade; nas relações se realiza ou fracassa o processo de humanização. As relações são a realidade mais importante, capazes de dar sentido, sabor e beleza à vida. Tudo aquilo que dizemos e fazemos tem sentido, quando dizemos e fazemos pelos outros.

A propósito, pode ser muito significativa a experiência daqueles que, por vários motivos, são obrigados a deixar tudo – casa, família, pátria, amigos, ambiente familiar – e viver em um país para eles estrangeiro e por vezes hostil aos estrangeiros. Na experiência deles, no início dolorosa, longe de sua terra, descobrem justamente a pátria nas relações, lá onde nos acolhemos reciprocamente, onde cada um é respeitado em sua diferença e pode dar e receber de igual para igual, sem ser olhados de cima para baixo!

Também Vilém Flusser – um dos mais influentes filósofos da comunicação das últimas décadas – viveu na pele a experiência de ser refugiado. Nascido em Praga, em 1920, fugiu dos nazistas em 1940, migrando para o Brasil. Ele escreve: “Não é o Brasil minha pátria, mas pátria são para mim as pessoas pelas quais sou responsável. [...] Um segredo ainda mais profundo da busca pela pátria geográfica, é a busca pelo outro. A pátria dos sem-pátria é o outro.”

O conceito de “pátria” se alarga e se refere agora não mais somente a um lugar geográfico, mas às relações com todos os homens. Flusser descobre que cada homem lhe pertence, que é responsável por cada um, como é responsável por sua família.

Justamente os migrantes e os refugiados podem nos recordar, portanto, aquilo que é mais importante na vida de cada homem: as relações com os outros, de igual para igual! A migração é como um apelo aos homens a não se esquecer de sua própria humanidade. Isso se torna um benefício para todos!! A emigração é como um termômetro que mede o grau de humanidade de uma sociedade. Não é difícil imaginar como o mundo poderia mudar se cada um olhasse e tratasse o outro como um membro de sua família. Cada um daria o melhor de si, colocaria em jogo suas melhores competências para encontrar e tornar possível as soluções mais humanas.

Todos fazemos experiência – também nos nossos encontros internacionais – que a fé em Jesus Cristo promove essa consciência do recíproco pertencer. Em Jesus, se revelou de modo definitivo quem é Deus: Ele ama, estima e busca todos e cada um incessantemente e sem condições. Esse é o fundamento da dignidade inviolável de cada pessoa. Cada homem pertence a Deus e, como consequência, cada homem pertence ao outro. Em Jesus, Deus não nos deu somente ensinamentos, mas a si mesmo. Se doou por cada pessoa – que saiba ou não – se fez homem, morreu e ressuscitou! A partir do mistério pascal esse sangue une todos os homens em uma única família humana.

Jesus, revelando o verdadeiro rosto de Deus, ao mesmo tempo revelou quem é o homem para Deus. Jesus é o homem mais realizado, o homem mais humano. Nele, o processo de humanização se cumpriu. Contemplando a vida de Jesus, vemos que de fato o estilo de vida que promove o processo de humanização dando alegria, fazendo florescer a vida, é aquele do dom de si, da aberturaaooutro. De fato, experimentamos isso continuamente, quando são tomadas decisões políticas com inteligência e coração a favor do bem comum, quando a centralidade é dada ao homem e não ao dinheiro, quando se age gratuitamente em favor dos outros, quando prevalecem o perdão e a mansidão, quando nos doamos reciprocamente uma renovada confiança, quando as portas permanecem abertas... então a vida floresce. O amor e a estima fazem florescer, dão esperança, alegria; o amor é criativo, age sempre pelo bem de todos, faz respirar todos a plenos pulmões! O fechamento diante do outro, ao contrário, mata, por assim dizer, a própria humanidade, provoca tristeza e faz murchar.

O amor encontra sua máxima expressão no mistério da Páscoa de Jesus, nesse movimento de saída, de liberação, de êxodo da morte, em todas suas expressões, para a vida. Na verdade, o verbo “amar” está sempre relacionado ao verbo “sair”. O movimento de saída de si para nos fazermos próximos ao outro envolve também fadiga, por vezes pode ser até doloroso, mas gera vida, sempre. Então se poderia dizer que assim como para vir ao mundo precisamos sair do ventre materno, de modo semelhante para renascer continuamente como homens sempre mais autênticos, é preciso sairmos de nós mesmos em direção aos outros. Em ambos os casos, as dores do parto são inevitáveis. Elas pertencem também ao processo de humanização que está acontecendo, não obstante as tantas situações desumanas que parecem negá-lo.

O Deus de Jesus é a condição de possibilidade para que o homem possa ser livre de viver como verdadeiro homem. Aquele que é chamado de “reino de Deus” é, na realidade, também o “reino do homem”, o lugar onde o homem é finalmente livre de ser um homem autêntico. Quanto maior for Deus, mais o homem é livre de viver uma vida grandiosa. Deus não está competindo com o homem!

Uma outra imagem a ser descontruída com a vida e – se necessário – também com as palavras é, portanto, aquela segundo a qual quanto maior for Deus, menor será o homem, mortificado, como se entre Deus e o homem estivesse em vigor uma relação inversamente proporcional.

Para novos horizontes de convivência na diversidade urge, portanto, fazer memória do Espírito, vale dizer, urge uma espiritualidade, entendida como fruto de uma vida exposta à ação transformadora do Espírito na história. Sempre me marcou o fato que os frutos do Espírito Santo – amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, domínio de si (Gálatas 5,22) – são todos dons que nos permitem viver o diálogo com o outro com o mesmo estilo de Jesus. Juntos formam a identidade do homem maduro, do homem autêntico.

Nos é dado acreditar que, com o mistério pascal, foi derramado no sulco na história o Espírito de amor do Senhor crucificado e ressuscitado, que aqui e agora é capaz de atualizar o Seu estilo de vida, promovendo, assim, o processo de humanização. Sem repouso Ele está agindo, “onde quer que os homens aceitem o risco do próprio existir, se sintam empenhados na busca da verdade e sintam toda a responsabilidade disso, mas especialmente onde se abrem ao amor por Deus e pelos irmãos”[i]. Onde quer que isso aconteça – dentro e fora da Igreja – ali está agindo o Espírito de Deus e é promovido o processo de humanização.

Poder acreditar nisso nos dá sempre nova esperança, alegria e força de nos empenharmos pelos outros, por um mundo mais humano. A fé, de um lado, faz nossos olhos capazes de perceber e valorizar o bem, o agir verdadeiramente humano, e por outro lado, aguça a nossa inteligência para promover a ação do Espírito Santo e colaborar com Ele onde quer que vivamos, trabalhemos ou estudemos.

Agnese

 


[i][i] Walter Kasper, Gesù il Cristo, Brescia: Queriniana, p. 378.

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